O contencioso do algodão representa um marco nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos. A vitória brasileira no caso algodão fez o país ser reconhecido mundialmente como uma referência de excelência no que diz respeito aos contenciosos em comércio internacional. Foi uma vitória absolutamente emblemática, com grande valor moral e comercial para o Brasil.
Desde que o governo brasileiro anunciou sua intenção de retaliar em TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) em 2010 a disputa ganhou ainda mais a atenção da mídia mundial. Não só por causa do interesse de vários membros da OMC, mas também porque ao contrário dos procedimentos de retaliação cruzada aprovados pelo OSC anteriormente, desta vez a ameaça veio de uma grande economia em desenvolvimento.
Ainda que o governo brasileiro historicamente tenha tentado sustentar a posição de que não tem predisposição em travar guerras comerciais, o país mostrou força política e habilidade nas negociações da OMC durante todo o contencioso, e deixou claro que seu único desejo era fazer com que os EUA tornassem sua legislação consistente com as regras do comércio multilateral.
Em 2010 tudo foi preparado para a retaliação cruzada: legislação doméstica (Lei 12.270/2010), consulta pública em direitos de propriedade intelectual, cálculos de impactos econômicos por especialistas do governo e publicação de Resolução CAMEX fixando data para iniciar a retaliação.
A ameaça de sanções levou a intensas negociações entre Brasil e os EUA no primeiro semestre de 2010 a fim de chegar a um acordo mútuo e tentar evitar a retaliação cruzada brasileira. Em abril do mesmo ano os dois membros apresentaram um Memorando Preliminar de Entendimento (MoU) à OMC com relação à disputa do algodão, identificando certas medidas e ações que, se respeitadas pelos EUA, levariam à suspensão da ameaça de retaliação brasileira.
Desde 2010, por conta do MoU entre os países, os EUA estavam pagando US$ 147 milhões anuais ao Brasil para evitar retaliação. No entanto, desde outubro de 2013 o país cessou os pagamentos e os produtores de algodão nacional têm pressionado o governo brasileiro em direção à retaliação, que pode ser definida no próximo dia 19 de fevereiro de 2014.
Importa destacar, no entanto, que em geral a retaliação em TRIPS apresenta desafios para ser posta em prática. Primeiramente, a fim de fazer uma retaliação cruzada viável (e crível), o país que intenciona suspender direitos de propriedade intelectual deve decretar uma legislação doméstica para permitir o procedimento, a exemplo do que fez o Brasil.
No que concerne à viabilidade econômica da suspensão de concessões em TRIPS, note-se que maior parte dos membros da OMC, ao contrário do Brasil, não tem condições econômicas para levar adiante uma retaliação cruzada. Basicamente, o país que está suspendendo direitos em propriedade intelectual (PI) deve ter, pelo menos: (i) um tamanho de mercado doméstico considerável; (ii) conhecimento básico e; (iii) meios suficientes para bancar os custos da retaliação.
Some-se a esses fatores o intenso lobby político que pode ser enfrentado pelo país que ameaça colocar em prática a retaliação cruzada em TRIPS e, por outro lado, a pressão que pode ser enfrentada pelo governo que corre o perigo de ficar sujeito a uma retaliação cruzada. Conforme se tem notícia, e pela experiência com os EUA, indústrias poderosas que dependem da propriedade intelectual geralmente estão dispostas a gastar enormes quantidades de dinheiro para investir em lobby para evitar a suspensão de seus direitos de propriedade intelectual.
Observa-se ainda que dos três casos em que pleitos de retaliação cruzada foram aprovados na OMC, quais sejam o CE-Bananas III, EUA-Jogos de Azar e EUA-Algodão, o único país que de fato pode oferecer uma ameaça crível de retaliação cruzada é o Brasil.
Finalmente, vale dizer que, em grande medida, a retaliação cruzada em TRIPS, se bem planejada e executada, pode contribuir significativamente para o aumento de bem estar da sociedade e para o incremento da inovação no país que está suspendendo as concessões de direitos de propriedade intelectual, ao passo que permite o acesso a informações que seriam utilizadas em favor da indústria doméstica do membro reclamante.
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Renata Vargas Amaral é Doutora em Direito Internacional por Maastricht University e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Sócia da Barral M Jorge Consultores Associados da área de Comércio Internacional.