O colapso do acordo de facilitação de comércio, que já tinha sido aprovado há sete meses mas foi desfeito agora por um único país, a Índia, deverá causar uma reviravolta na Organização Mundial do Comércio (OMC) na volta das férias, em setembro. Em entrevista ao Valor, o diretor-geral da entidade, Roberto Azevêdo, admite que ‘deverá haver uma mudança na dinâmica das negociações’.
A dimensão dessa mudança dependerá dos 160 países membros, levando em conta o histórico de dificuldades para negociar a Rodada Doha. ‘Se nem todos estão prontos para avançar na mesma direção e com o mesmo ímpeto, como permitir que a grande maioria o faça?’, pergunta Azevêdo.
Brasileiro com o mais importante posto na governança global, Azevêdo diz que acordo plurilateral de liberalização, pelo qual participa quem quer, não inviabiliza a OMC. Mas que uma ampla gama de temas, como subsídios agrícolas, precisa ser negociada multilateralmente. Leia abaixo trechos da entrevista:
Valor: Ao que o sr. atribui o bloqueio da Índia ao acordo de facilitação de comércio? Até que ponto a Índia não foi atendida em suas demandas? Quem ganha e quem perde com o que aconteceu?
Roberto Azevêdo: A Índia argumentou que os avanços na área de facilitação de comércio estavam ocorrendo rapidamente e que as negociações que interessavam a eles seguiam um ritmo mais lento. Ocorre que o próprio pacote acordado previa avanços diferenciados e prazos distintos nas diferentes áreas. Na verdade, o acordo de facilitação de comércio era um texto já finalizado. Faltavam apenas detalhes técnicos para sua adoção. A Índia, por sua vez, tinha interesse em algo que ainda precisava ser negociado. Ao procurar vincular as duas coisas, a Índia encontrou forte resistência dos outros membros da OMC, que viam a posição indiana como uma tentativa de renegociar o pacote de Báli. Chegamos a aproximar as posições mas não pudemos concluí-las no tempo que tínhamos. As cartas foram colocadas na mesa muito perto do prazo de 31 de julho previsto no acordo de Báli. Quem perderá mais são os países pequenos. Os grandes têm outras opções. Mas à medida em que os países mais vulneráveis saiam perdendo, não deixará de ser um resultado desastroso para todo o sistema.
Valor: O sr. disse aos países da OMC que não se trata de mais um prazo perdido e que as consequências serão significativas. Quais serão essas consequências?
Azevêdo: Não será o diretor-geral quem vai determinar as consequências desse impasse, serão os próprios membros, com suas reações e posturas quando retomarmos os trabalhos em setembro. Só então poderemos aferir o tamanho e o verdadeiro impacto desse impasse. No entanto, as conversas que tive nas últimas semanas indicam que em setembro não deveremos retomar os trabalhos nas mesmas circunstâncias que existiam antes do impasse. Deverá haver uma mudança na dinâmica das negociações na OMC.
Valor: Devem os membros da OMC começar enfim a considerar alternativas à regra do consenso?
Azevêdo: Não há a menor possibilidade de se abrir mão do consenso na OMC. No entanto, isso não significa que não possamos trabalhar com alternativas que prescindem da abordagem estritamente multilateral. As regras da organização oferecem espaço para isso. Mas, novamente, cabe aos membros determinar o caminho a ser seguido.
Não será o diretor-geral quem vai determinar as consequências do impasse, mas os próprios membros
Valor: Vários países de peso querem ir na direção de acordos plurilaterais. Isso inviabiliza a OMC?
Azevêdo: Esse caminho já vem sendo trilhado há algum tempo. Os acontecimentos dos últimos dias não mudam a busca da trilha não multilateral fora da OMC. O que precisamos é encontrar solução para os trabalhos que se desenvolvem dentro da Organização. Essa deve ser a prioridade. De qualquer forma, acordos plurilaterais não inviabilizam a OMC. Eles apenas complementam as negociações da OMC sem jamais poder substituir as negociações multilaterais. Só na OMC podem ser discutidos temas como subsídios agrícolas, regulamentação doméstica de serviços, regras de defesa comercial, entre outros assuntos que chamamos de ‘horizontais’. Os acordos regionais ou bilaterais tampouco conseguirão substituir os pilares de solução de controvérsias e de monitoramento da OMC, que seguem funcionando bem. O desafio está na área de negociação apenas.
Valor: Como reconhecer na OMC que há países que não estão interessados em que o sistema multilateral de comércio funcione?
Azevêdo: Não concordo com a visão de que há países que não têm interesse em que o sistema funcione. Há, é verdade, visões diferentes de como e com qual velocidade se pode avançar na direção de um comércio mais livre e de regras mais rígidas. É com essa heterogeneidade que temos que aprender a lidar. Se nem todos estão prontos para avançar na mesma direção e com o mesmo ímpeto, como permitir que a grande maioria o faça? Isso teremos que responder.
Valor: Se não se aprova nem o que já foi negociado, como esperar programa de trabalho em dezembro para retomar a Rodada Doha? Não seria melhor reconhecer de vez a morte dessa negociação para evitar mais corrosão da credibilidade da entidade?
Azevêdo: Sem dúvida a confiança entre os membros foi abalada por esse episódio e tornará as negociações da Rodada mais difíceis. Se em condições normais já seria muito desafiante encontrar soluções, agora será ainda mais trabalhoso. Para que a negociação avance, há necessidade de que todos acreditem estar trabalhando por um resultado razoável e mutuamente satisfatório para todos. Como eu disse, temos que esperar até a retomada das conversações em setembro para determinar como ficará a dinâmica das negociações entre os membros.
Valor: Qual o impacto do bloqueio hoje na OMC para países como o Brasil e o que o sr. sugere?
Azevêdo: O Brasil é um país com um comércio muito diversificado geograficamente. Os principais destinos das exportações brasileiras não têm, individualmente, mais de 20% do total das vendas do país. Independentemente das negociações que venha a manter e das opções comerciais que venha a fazer, o Brasil não poderá abrir mão de um sistema globalizado para o comércio internacional, com regras previsíveis e abrangentes. O Brasil ganha com disciplinas verdadeiramente globais e tem atuado com pragmatismo na defesa dos seus interesses na OMC. Como os demais países com economias de grande dimensão, o Brasil tem alternativas para avançar seus interesses comerciais que não são incompatíveis com a agenda multilateral. Não são vias mutuamente excludentes e penso que o governo brasileiro jamais pensou dessa forma.
Valor: Como o sr. vê o futuro da OMC, diante do aumento de mega acordos regionais e outras iniciativas comerciais fora da entidade?
Azevêdo: Esses acordos sempre existiram e continuarão a existir. O sistema multilateral não substitui os acordos regionais e vice-versa. Os dois se complementam. O tipo e o teor das negociações nesses dois trilhos são completamente diferentes. A maior similaridade está na negociação dos cortes tarifários. Mas isso é muito pouco se comparado com a agenda comercial do mundo atual. As tarifas já estão contabilizadas nos negócios e nos investimentos. A maior parte dos entraves comerciais e dos imponderáveis aparece atrás das fronteiras, com barreiras não tarifárias de várias ordens. O problema não é a existência de outros acordos que, de fato, não competem com a OMC. O problema é a dificuldade de avançar as negociações na OMC.