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Autor: Alberto Carbonar
 
Diante do atual cenário de grave crise política e de recessão econômica que restou instalada no país nos últimos anos, os governos estaduais têm sofrido com a constante queda de arrecadação da principal fonte de receita dos estados, o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS), sendo necessária a busca de novos horizontes de tributação ainda não explorados ou alcançados pelas Secretarias de Fazenda Estaduais. Conforme se verifica na movimentação realizada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) no final do ano de 2015, com a edição do Convênio ICMS n. 181/2015, o grande alvo das Fazendas Públicas Estaduais nos próximos anos será o setor de tecnologia no Brasil. Este certamente enfrentará grandes disputas fiscais nas esferas administrativa e judicial em todo o território nacional.
De fato, por meio do referido convênio, o Confaz autorizou diversas unidades da Federação¹ a conceder redução de base de cálculo do ICMS que corresponda ao percentual de no mínimo 5% do valor da operação que envolva softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming)².
O Estado de São Paulo, em particular, já havia se antecipado em relação ao Confaz com a edição do Decreto Estadual (SP) n. 61.522 de 2015, que afastou a incidência do ICMS apenas sobre o (dobro do) valor da mídia e também passou a prever, a partir de 01/01/2016, o recolhimento do ICMS nas operações de vendas de softwares sobre o valor total da operação³.
Contudo, ainda em janeiro de 2016, foi publicado o Decreto Estadual n. 61.791/2016, no qual:
1. se suspendeu a cobrança de ICMS nas operações com softwares e congêneres, quando disponibilizados por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming), até
que haja definição quanto ao local de ocorrência do fato gerador do ICMS; e
2. se incorporou à legislação paulista (Decreto Estadual no 45.490/2000 – RICMS/SP) a redução de base de cálculo prevista no Convênio ICMS n. 181/15.
Não obstante, mesmo que em momento futuro venha a ser estabelecida uma definição quanto ao local de ocorrência do fato gerador do tributo, observa-se que as alterações legislativas realizadas pelo Convênio ICMS n. 181/2015 e Decreto Estadual n. 61.791/2016 possuem vícios de ordem legal e constitucional por permitirem a tributação das operações com softwares e congêneres pelo ICMS.
Em primeiro lugar, de acordo com os itens 1.04, 1.05 e 1.09 da lista anexa à Lei Complementar (LC) n. 116/2003, as operações com softwares, personalizados ou não, bem como os serviços de disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet estão sujeitas ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), sendo que, de acordo com o art. 2º, inciso V da LC n. 87/96, tais operações somente poderão sofrer a incidência do ICMS quando houver previsão expressa na lei complementar aplicável ao imposto municipal4 (LC n. 116/2003), situação que não se verifica na legislação complementar do ISSQN em relação aos itens 1.04, 1.05 e 1.09.
Caso seja autorizada a tributação do ICMS sobre as operações com softwares quando já há a tributação do ISSQN pelos itens 1.04 e 1.05 da lista anexa à LC n. 116/2003, tal situação acarretaria notória bitributação, ou seja, dois entes que tributam um mesmo fato gerador, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico. Ainda, quanto à hipótese da tributação de operações de softwares mediante download ou streaming, trata-se de uma nova hipótese de incidência não prevista no art. 155, inciso II da Constituição Federal de 1988 (CF/88)5, razão pela qual é necessária a edição de Lei Complementar específica com o objetivo de solucionar o conflito de competência entre Estados e Municípios para cobrança do tributo e definir a base de cálculo, o fato gerador e contribuintes responsáveis pelo recolhimento do tributo; nos termos do art. 146 da CF/88.
Com efeito, as operações de softwares via download ou streaming não se assemelham à hipótese de incidência do ICMS prevista no art. 155, II da CF/88, pois:
1. nem o download, nem o streaming caracterizam, em termos fiscais, uma circulação efetiva de mercadorias (transferência de propriedade), apta a ensejar a ocorrência do fato gerador do tributo;
2. o software em si é um bem imaterial e intangível, não sendo possível identificá-lo, de forma objetiva, com uma mercadoria concreta.
Como bem leciona Roque Antônio Carrazza6, os softwares por serem bens incorpóreos e fruto de trabalho intelectual, claramente, tipificam “modalidade de direito intelectual”7, razão pela qual possuem “a proteção jurídica dispensada aos direitos autorais”8, sendo objeto de contratos de licença de uso9.
Por sua vez, os contratos de licença de uso, aplicáveis à grande maioria das operações de softwares via download e streaming, possibilitam ao usuário (licenciado) o direito de uso do software criado pelo licenciador, sem, no entanto, ocorrer a transferência da propriedade intelectual dos direitos imateriais, propriedade necessária para caracterização do núcleo material do ICMS.
Em outras palavras, “o contrato de licença de software corresponde a uma simples cessão do uso, não envolvendo a transferência da titularidade dos direitos autorais relativos ao software”, como aponta Henry Lummertz10, com apoio no sólido posicionamento da doutrina especializada11, motivo pelo qual na referida operação não é possível se verificar a incidência do ICMS.
Nesse sentido, cumpre mencionar que a 2ª Vara de Fazenda Pública do Estado de São Paulo proferiu decisão liminar12 afastando a aplicação dos Decretos Estaduais (SP) n. 61.522/15 e 61.791/16, tendo em vista a violação ao princípio da legalidade tributária e da bitributação por verificar que tais operações estão sujeitas ao ISS. Destaca-se que a decisão foi mantida integralmente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP).
No mesmo sentido, o Sindicato das Empresas de Informática do Rio Grande do Sul (Seprorgs), com o intuito de afastar a incidência de ICMS nas operações com software e demais arquivos eletrônicos disponibilizados por qualquer meio, ajuizou ação judicial na qual foi proferida decisão liminar13 com fundamentação jurídica idêntica àquela adotada em São Paulo, no sentido de que a legislação estadual fere os princípios da competência e legalidade e que estaria configurada a bitributação, uma vez que incide ISS, exigido pelos entes municipais, sobre o mesmo fato gerador.
Ainda, vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 176.626/SP14 e 199.464/SP15, firmou posicionamento pela impossibilidade de caracterização do software como mercadoria, em razão de se tratar de bem intangível, sendo possível a tributação somente de seu suporte físico (mídias); e pela não incidência do ICMS sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso do software, tendo em vista inexistência de circulação efetiva de mercadoria.
Apesar dos precedentes acima mencionados, observa-se que o próprio STF criou divergência jurisprudencial no julgamento da medida cautelar na ADI n. 1945/MT, proposta em face de dispositivos normativos da Lei Estadual (MT) n. 7.098/98 do Mato Grosso, os quais previam a incidência do ICMS na aquisição de software mediante transferência eletrônica de dados. Quanto a esses dispositivos específicos, a medida cautelar pleiteada pelo contribuinte foi indeferida por decisão apertada16, tendo em vista a necessidade da própria Suprema Corte refletir com maior profundidade acerca do tema e, em razão, da norma estar vigente há mais de 12 anos. O processo aguarda para ser incluído em pauta para julgamento em definitivo pelo STF17.
Mesmo que o tema aqui discutido esteja pendente de julgamento definitivo pelo STF18, como visto acima, é possível verificar que a Cláusula 1ª do Convênio ICMS n. 181/2015 é nitidamente inválida por afrontar os arts. 146 e 155, II da CF/88, na medida em que busca incluir indevidamente as operações com software realizadas mediante download e streaming no âmbito da incidência constitucional do ICMS.
Nesse sentido, com todo o respeito ao “mumus” conferido ao Confaz, por mais louvável que seja a finalidade de instituir uma determinada tributação, não se pode permitir a edição de normas ao arrepio do que restou estabelecido pela Constituição Federal de 1988, sob pena de se estar ferindo o Estado Democrático de Direito, bem como o princípio da segurança jurídica, o qual está umbilicalmente relacionado ao princípio da confiança legítima entre Estado e contribuintes.
Diante disso, uma solução alternativa para possibilitar a incidência de ICMS sobre as operações com software via download e streaming, de modo a combater a queda de arrecadação fiscal enfrentada atualmente pelos Estados e Distrito Federal, seria a edição de uma Emenda Constitucional pelo Congresso Nacional que permitisse, expressamente, tal incidência. Inclusive, tal situação já ocorreu anteriormente de modo semelhante com o “ICMS-Importação”, introduzido pela Emenda Constitucional n. 33, de 11 de dezembro de 2001, a qual acrescentou a alínea “a” ao inciso IX, do § 2o do art. 155 da Constituição Federal.
Não obstante, até que seja editada a referida Emenda Constitucional, espera-se que tais balizas sejam observadas pelas autoridades administrativas no exercício pleno de suas funções, de modo que nosso país possa superar desafios sem o atropelo do texto constitucional.

[1] Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.
[2] O Convênio autoriza os Estados a não exigir, total ou parcialmente, os débitos fiscais do ICMS, lançados ou não, inclusive juros e multas, relacionados com as operações previstas, ocorridas até a data de início da vigência deste convênio. Essa não exigência veda a restituição ou compensação de importâncias já pagas e deverá observar as condições estabelecidas na legislação estadual.
[3] Importante mencionar que o referido “benefício” possui caráter opcional, em substituição à sistemática normal de tributação, sendo vedada a apropriação de quaisquer outros créditos ou benefícios fiscais pelo contribuinte em caso de sua utilização.
[4] Art. 2° O imposto incide sobre: (…) V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.
[5] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…)  II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
[6] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. Ed. Malheiros Editores. 17ª Edição. p.190-192.
[7] Idem. p.191.
[8] Idem. p.192.
[9] Conforme se infere dos arts. 2º e 9º da Lei n. 9.609/1998 e arts. 7º e 28, inciso XII da Lei n. 9.610/98.
[10] LUMMERTZ, Henry. “Cobrança de ICMS no download de softwares é prenúncio de conflitos”. CONJUR. Disponível online em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-06/henry-lummertz-icms-download-software-prenuncio-conflitos>.
[11]  BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 136, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 43, 51 e 52; GONÇALVES, Renato Lacerda de Lima. ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. In MACHADO, Rodrigo Brunelli. ISS na Lei Complementar nº 116/2003. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 143; REIS, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 160, jan. 2009, p. 25-34, p. 27.
[12] Mandado de Segurança nº 1032928.66.2016.8.26.0053.
[13] Ação Ordinária n. 1160124279-5.
[14] EMENTA: I. Recurso extraordinário (…) II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador (“software”): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador” ” matéria exclusiva da lide “, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado “software de prateleira” (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.  (RE 176626, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 10/11/1998, DJ 11-12-1998 PP-00010 EMENT VOL-01935-02 PP-00305 RTJ VOL-00168-01 PP-00305)
[15] EMENTA: TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. ICMS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE). COMERCIALIZAÇÃO. No julgamento do RE 176.626, Min. Sepúlveda Pertence, assentou a Primeira Turma do STF a distinção, para efeitos tributários, entre um exemplar standard de programa de computador, também chamado “de prateleira”, e o licenciamento ou cessão do direito de uso de software. A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS. Recurso conhecido e provido. (RE 199464, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 02/03/1999, DJ 30-04-1999 PP-00023 EMENT VOL-01948-02 PP-00307)
[16] À época do julgamento da medida liminar, os Ministros Octavio Galotti (aposentado), Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Celso de Mello, votaram pelo deferimento da liminar, enquanto que os Ministros Nelson Jobim (aposentado), Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Eros Grau (aposentado), Ayres Britto (aposentado) e Cezar Peluso (aposentado) votaram pelo indeferimento.
[17] Além da ADI mencionada acima, foi ajuizada perante o STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5576/SP pela Confederação Nacional de Serviços (CNS), com intuito de ver reconhecida a inconstitucionalidade do Decreto Estadual (SP) n. 61.791/16 diante da criação de bitributação e nova hipótese de incidência do imposto estadual.
[18] ADI 1945/MT e ADI 5576/SP.

 
(*) Texto originalmente publicado no Boletim BMJ | Agosto de 2017.