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Operação do exército após violentos confrontos entre gangues na favela da Rocinha, Rio de Janeiro, Brasil, 22 de setembro. REUTERS/Ricardo Moraes

“Avisa a favela toda, quem está entrando é o bonde do Nem”. O áudio que correu o noticiário da semana mostra um retorno ao passado para o Rio de Janeiro. Desta vez, trata-se de um retorno a 2011. Em uma madrugada de quinta-feira, uma batida policial parou um Toyota Corolla no bairro da Gávea, zona sul do Rio. O motorista era advogado de Nem e recusou-se a ter o carro revistado. Foi levado à delegacia, onde ofereceu 30.000 reais em dinheiro vivo aos policiais para que fosse liberado. Não deu certo.

No porta-malas estava o traficante Antonio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha. O homem, que era nacionalmente conhecido e procurado como comandante do morro, foi levado para a sede da Polícia Federal da capital fluminense. O episódio foi considerado uma vitória da política de de segurança de UPPs do então secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame e, na esteira, do então popular governador Sérgio Cabral (PMDB). O homem mais procurado do Rio estava atrás das grades. Era o fim de um domínio de anos.

De lá para cá, o Rio mergulhou em uma crise financeira sem precedentes que atrasou salários, fechou a universidade estadual e reduziu os investimentos da polícia. Resultado: os índices de violência voltaram a subir, e episódios que pareciam ter ficado no passado, como balas perdidas atingindo estudantes dentro de escolas voltaram a acontecer.

Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostra que os indicadores de 2006 a 2016 registram melhora por conta das UPPs, mas evidencia retrocesso a partir daquele mesmo ano, de 2011. A data foi marco de uma queda de 46% desde 2006 e de um salto de 122% até 2016. As mortes violentas de 2011 a 2016 subiram 26% — de 4.960 para 6.262. São os piores números desde 2009.

A frustração de arrecadação, pelas políticas do governo do estado de ter confiado demais no crescimento no início dos anos 2010 e nos royalties do petróleo, fez a crise se espalhar pelos mais diversos setores. As aposentadorias passaram de 10 bilhões de déficit para 12 bilhões entre 2015 e 2016 e, nos últimos cinco anos, houve avanço da folha de pagamento da ordem de 60%. A previsão de rombo é de 22 bilhões de reais para 2017, depois de 17,5 bilhões no ano passado. O estado ficou em frangalhos.

O retorno ao passado é tão surreal que até o nome de Nem voltou ao protagonismo. O áudio que inicia esta reportagem é do último domingo, quando um grupo de traficantes a mando de Nem tentou retomar seus espaços na Rocinha. Mesmo preso no Tocantins, Nem coordenou o grupo por meio do “home office” do crime organizado, como definiu Raul Jungmann, ministro da Defesa.

Não fosse absurdo o suficiente uma horda de traficantes, uniformizados de preto, subindo o morro com fuzis no fim de semana, a resposta do governo à situação se deu apenas na sexta-feira, com uma megaoperação do Exército, que cercou a favela com 950 homens e 10 blindados.

Foram necessários cinco dias de confrontos dentro do morro, com ações pontuais da polícia e tiroteios diários. Em cenas de guerra, moradores da comunidade ficaram ilhados e moradores que retornavam para suas casas ficaram para fora depois do expediente de trabalho.

Da glória ao caos

Ações como essa evidenciam como o Rio foi da glória ao caos sob a batuta do PMDB e da quadrilha que o partido instalou no comando do estado. O homem que capturou Nem, José Mariano Beltrame, pediu demissão em outubro de 2016 por conta do sucateamento do sistema. Seu chefe, o governador Sérgio Cabral, está preso.

Enquanto os confrontos na Rocinha aconteciam, Cabral foi condenado na quarta-feira a 45 anos e dois meses de prisão pelo juiz federal Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal Federal do Rio, na Operação Calicute. A pena se junta a outros 14 anos e dois meses de reclusão, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, determinados pelo juiz Sergio Moro, na Operação Lava-Jato. Preso desde novembro do ano passado, Cabral é réu em mais 13 ações penais.

Os múltiplos processos mostram que, além de falta de planejamento nos bons anos, o Rio foi contaminado por uma extensa malha de corrupção. Cabral é líder disparado nas acusações, mas há delatores que envolvem seu sucessor Pezão e a alta cúpula do partido no estado. O governador foi citado por delatores da Odebrecht e tem um inquérito aberto no Supremo que corre sob sigilo de Justiça.

Outro nome forte do partido no Rio, Jorge Picciani, foi conduzido coercitivamente em março por suspeita de envolvimento em um esquema em fraudes em decisões do Tribunal de Contas do Estado, mediante pagamento de propinas. Ainda nos quadros do PMDB do Rio está um dos piores ativos do mundo político em tempos de Lava-Jato. Dispensando apresentações, Eduardo Cunha está preso desde outubro de 2016 por envolvimento em múltiplos esquemas na Operação Lava-Jato.

Cunha é também um dos nomes fortes do “quadrilhão do PMDB na Câmara”, grupo que está sendo processado pela denúncia que atinge o presidente Michel Temer — do PMDB, mas de São Paulo — como membro de organização criminosa. A base da denúncia é a delação do doleiro Lúcio Funaro, operador de Cunha e que tem nas mangas ainda mais segredos da cúpula do partido, do Rio inclusive.

A única figura de grande expressão do partido que segue sendo acertada só de raspão pelas investigações é o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes. No início de agosto vieram as mais contundentes suspeitas contra sua gestão. A primeira, quando seu ex-secretário de obras Alexandre Pinto da Silva foi preso pela Operação Rio 40 Graus pelo suposto recebimento de propina nas obras do BRT Transcarioca e fraudes na despoluição da Bacia de Jacarepaguá.

Dias depois, Rodrigo Bethlem, ex-secretário de governo de Paes, foi alvo de busca e apreensão por ter “oferecido” um esquema de propina de empresários de ônibus à gestão de Marcelo Crivella (PRB). O prefeito nega saber que de quaisquer casos de desvios.

O desgoverno e a corrupção custaram poder político. Nas eleições de 2016, o PMDB já deu demonstrativo de perda de vigor com a candidatura do deputado federal Pedro Paulo para prefeito da capital. Desgastado por uma denúncia de agressão à esposa, Pedro Paulo teve apenas 16,1% dos votos válidos e ficou de fora do segundo turno, mesmo com apadrinhamento do então prefeito, que havia acabado de sediar com sucesso os Jogos Olímpicos de 2016.

Crivella, seu sucessor, se pronunciou apenas no começo da noite, afirmando que o dia era “de muita aflição”, mas que estava confiante de que “o Rio vencerá esta batalha”.

Com isso tudo na conta, Paes é o nome cotado pelo partido para uma candidatura ao governo do Rio. Cientistas políticos consultados por EXAME divergem sobre sua condição de ser eleito em meio ao cenário de bombardeio à moral e condução do partido nos últimos anos. Fernando Schüler, cientista político e professor do Insper, diz que o PMDB ainda tem bancada na assembleia e capital político para ser competitivo. “Penso que Paes tem totais condições de formar um leque de alianças competitivo”.

Para Wagner Parente, diretor da consultoria política Barral M Jorge, a chance é “zero”. “No momento atual, é mais fácil o DEM ocupar esse espaço do PMDB, com a ascensão política de Rodrigo Maia”, afirma. “A maioria dos nomes que já estão no Congresso ficam muito ligados aos escândalos. No Senado, o PMDB do Rio não tem ninguém para ajudar e, na Câmara, são poucos. Não adianta, o partido tem que se refundar”.

Maia aproveitou a crise de segurança na Rocinha para participar mais da política estadual. Na tarde desta sexta-feira pediu a demissão do secretário de Segurança do Rio, Roberto Sá, ao afirmar que ele “perdeu as condições de comandar a política de segurança pública”.

Mesmo ocupada, a Rocinha voltou a registrar tiroteios na madrugada deste sábado, como revela o jornal O Globo. Unidades de saúde permanecerão fechadas na favela pelo menos até segunda-feira. Enquanto isso, dezenas de milhares de pessoas vão acompanhar, a poucos quilômetros dali, os shows de The Who e Guns N’ Roses no Rock in Rio. Bem-vindo ao Rio de Janeiro, uma cidade surreal.

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